A Revolta das Partes contra o Todo orgânico
Vivemos na era da híper-conexão, dos fluxos de informação infinitos e de um progresso material sem precedentes. No entanto, um paradoxo angustiante define os nossos tempos: nunca estivemos tão conectados e, simultaneamente, tão divididos e profundamente sós. Esta solidão não é apenas a carência de companhia; é uma solidão de si mesmo, um divórcio interno do ser humano face à sua própria essência.
Este fenómeno não é um acidente, mas sim o sintoma de um processo de despersonalização em marcha, cujas raízes se aprofundam no solo do século XX. A combinação de forças anónimas, mercados globais, algoritmos omnipresentes, burocracias impessoais, com um desvio filosófico que, em algumas das suas correntes, abraçou o niilismo, esvaziou o indivíduo de uma identidade sólida. Sem uma identidade individual claramente definida e valorizada, torna-se impossível construir uma identidade social ou cultural coesa. A sociedade arrisca-se a transformar-se num amontoado de elementos desconexos, sem uma ordem intrínseca que os ligue organicamente e lhes dê um rosto coletivo.
As instituições tradicionais (a família alargada, a comunidade local, as associações de solidariedade) que outrora forneciam enquadramento, significado e pertença, veem o seu valor e significado em processo rápido de erosão. Por seu lado, o indivíduo é cada vez mais atomizado, reduzido à sua circunstância imediata e a um individualismo estéril. Esta solidão hiperbólica manifesta-se mesmo no meio da multidão, mascarada pelo ruído ensurdecedor das ofertas da sociedade de consumo, que promete preencher um vazio que, paradoxalmente, ajuda a minar.
O sofrimento e o desencanto coletivos aumentam a um ponto crítico, onde a sociedade em si se torna clinicamente doente. A este propósito, torna-se oportuna uma metáfora de doença individual e da doença psíquica social: o aparecimento do cancro como «solução e desculpa». O cancro é, na sua essência biológica, uma mutação genética resultante de um descontrolo celular, uma revolta das partes contra o todo orgânico. Não será esta uma imagem perfeita do que acontece a nível de consciência social? As mutações individuais e sociais, a perda de valores partilhados, a desagregação do laço social, resultam de uma consciência individual e coletiva descontrolada, que, focada apenas no eu imediato e no prazer funcional, conduz à autodestruição do organismo social. Cada época tem, de facto, as suas doenças e os seus estados de alma, e a nossa tem a da patologia da desconexão (desligação individual e social que cede o lugar a uma conexão exterior virtual que tudo amarra).
Os sintomas desta doença são estranhos e reveladores. A solidão leva a que o afecto seja canalizado para substitutos, como o «casamento» com animais de estimação, relação que, sendo genuína no afecto, é funcionalmente imune às complexidades do compromisso humano. Na política, o oportunismo segue agendas exteriores ou ditadas por sondagens e estatísticas sociológicas, e não por princípios ou visões de futuro, num ajustamento virtual às massas, e não uma liderança baseada na relação humana autêntica nem numa sociedade consciente do seu sentido.
O caso extremo, mas sintomático, dos mais de 4.000 «casamentos tecnológicos» no Japão, onde pessoas casam com personagens de realidade virtual, é o indício mais claro deste devir. Não é uma excentricidade, mas um sinal de alarme: o ajustamento das relações humanas está a ser substituído por um ajustamento virtual, baseado em satisfações imediatas, controláveis e de essência meramente funcional.
Perante este diagnóstico sombrio, somos chamados a uma reflexão urgente. Não se trata de um regresso romântico a um passado idealizado, mas de uma pausa consciente para repensar a pessoa e a sociedade. Há que resgatar e reavaliar os «ensinamentos perenes» que o desenvolvimento humano nos foi proporcionando ao longo de milénios: a dignidade da pessoa, a importância da comunidade, o valor do sacrifício pelo outro, a busca de significado que transcende o material, a força do amor e da vulnerabilidade partilhada.
O desenvolvimento do poder tecnológico e virtual não é inerentemente mau; é uma ferramenta poderosa e útil. No entanto, ameaça destruir o humano se for este a servir a tecnologia, e não o contrário. O risco final é que o humano perca aquilo que o define: a personalidade, a razão, que se torna mero cálculo, e o sentimento, que se torna mera emoção superficial.
A pergunta que se coloca à nossa sociedade, chamada a ser cada vez mais humana e feliz, é crua: teremos a coragem de desligar o ruído, de nos reencontrarmos connosco próprios e, a partir desse centro repensado, reconstruir relações autênticas que curem a nossa solidão existencial? Ou continuaremos a preferir o matrimónio silencioso com as máquinas, confortáveis e previsíveis, mas incapazes de nos devolver o rosto que estamos a perder?
A cura começa com o diagnóstico e com a recusa coletiva em aceitar a autodestruição como preço inevitável do progresso.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo